Episódio 4: Seja como os moleques
“Versão Brasileira: Coisas Triviais”
Sejam bem-vindas crianças!
Meus queridos moleques jovens e também os moleques de cabelo branco. Quanto tempo faz que vocês não assistem a um bom desenho animado? Quanto tempo faz que vocês não se sujam de suor, terra e muito cansaço?
Neste artigo passaremos por episódios animados de reflexões e poesias, para acender a nostalgia da nossa infância e, quem sabe te animar a fazer uma molecagem saudável?
A tela que iluminava a infância
Era sempre no mesmo ritual. A casa se aquietava depois da escola, o uniforme ainda amassado no corpo, o cheiro de merenda misturado com o som distante da rua. A criança se jogava no chão da sala, de barriga para baixo, apoiando o queixo nas mãos. O clique do botão da TV era quase solene. A tela piscava, ganhava cor e, de repente, o mundo real desaparecia.
Aquele pequeno retângulo de vidro não era apenas uma televisão, era um portal. Nele, monstros conviviam com crianças comuns, heróis surgiam do nada, e até mesmo um cachorro falante podia resolver mistérios com uma turma de adolescentes. O brilho azul que escapava da tela era quase sagrado: era a luz que dava forma à imaginação.
Mas por trás da fantasia, havia uma lição oculta. Naquele tempo, poucos de nós entendiam. Hoje, adultos, conseguimos enxergar: os desenhos nos ensinavam valores com uma sutileza que nenhuma palestra conseguiria.
Em Caverna do Dragão, aprendemos que coragem não significa ausência de medo, mas a escolha de seguir mesmo quando o perigo é inevitável. Em Scooby-Doo, a lição era que a cooperação vence enigmas que, sozinhos, não conseguiríamos decifrar. Em Dragon Ball, vimos que a verdadeira força nasce da persistência: Goku podia cair mil vezes, mas sempre voltava, mais determinado do que nunca.
Essas histórias simples plantaram sementes silenciosas em nós. Quando adultos, diante de fracassos ou decepções, é quase inevitável não lembrar do personagem que apanhava e se levantava. É como se o herói animado dissesse, ainda hoje, que desistir nunca foi uma opção.
O brilho da tela foi muito mais do que distração: foi iniciação. Uma espécie de catequese da imaginação, onde aprendíamos, sem perceber, a interpretar a vida.
Amizade em traços coloridos
Se há uma palavra que atravessa quase todas as produções que marcaram nossa infância, essa palavra é amizade.
Nos cartoons clássicos, a amizade era um pacto silencioso. Em Os Smurfs, a comunidade só funcionava porque cada um assumia sua função: um cozinhava, outro criava, outro reclamava, e todos, juntos, sustentavam a vida na vila. Em He-Man, o herói tinha aliados que completavam suas fraquezas, lembrando-nos de que ninguém vence batalhas sozinho.
Nos animes, a amizade ganhava intensidade quase épica. Em Cavaleiros do Zodíaco, os personagens se sacrificavam até a última gota de sangue pelo companheiro caído. Em Naruto, a dor do abandono se transformava em um grito por reconhecimento e, no fundo, no desejo de encontrar alguém que nunca o deixasse só.
Essas narrativas, recheadas de exageros e cores vibrantes, continham uma verdade essencial: o outro nos salva. Se hoje a vida adulta insiste em nos empurrar para a competição, para o individualismo, talvez devêssemos voltar a esses desenhos para lembrar o óbvio. O valor de uma amizade não está em quantas vitórias se conquistam, mas em quantas vezes se tem alguém para dividir as derrotas.
E há também algo de revolucionário nesses traços. Ao ensinar que a amizade é central, esses desenhos plantavam uma resistência silenciosa contra um mundo que insiste em nos isolar. Quando revemos essas cenas, não é apenas nostalgia: é um lembrete. O pacto de estar junto continua sendo uma das formas mais puras de humanidade.
Coragem, ética e a biblioteca emocional
Os desenhos animados foram também nossa primeira introdução à ética. Eles nos ensinaram, ainda que de forma caricata, o que era justo e o que era abuso de poder.
Em He-Man, o poder nunca era usado para se impor sobre os mais fracos, mas para proteger. Em Pokémon, a vitória só tinha valor quando havia respeito pelo adversário afinal, era possível vencer e continuar honrando quem estava do outro lado. Em Yu Yu Hakusho, a redenção de personagens que pareciam vilões mostrava que ninguém é totalmente perdido.
A ética que aprendemos ali não era teórica: era vivida, experimentada em cada episódio. Sem perceber, fomos colecionando valores como quem guarda figurinhas.
E junto com esses valores, fomos montando o que poderíamos chamar de biblioteca emocional. Uma música de abertura era suficiente para nos transportar para outra época. Uma frase de efeito podia nos devolver a coragem perdida. Uma imagem colorida reativava a memória da infância como se fosse ontem.
Esses símbolos: músicas, cores, expressões não ficaram presos no passado. Eles continuam atuando dentro de nós, como se fossem códigos secretos, capazes de nos relembrar o que importa.
E talvez aí esteja a lição mais poderosa de todas: a coragem não é algo distante, reservado a heróis fantásticos. A coragem é cotidiana, é levantar da cama em dias difíceis, é pedir ajuda quando tudo parece pesado, é continuar acreditando no impossível mesmo quando a realidade insiste em dizer não.
Os desenhos nos ensinaram isso com espadas mágicas, criaturas improváveis e batalhas surreais. Mas, no fundo, estavam apenas traduzindo para a linguagem da infância aquilo que agora chamamos de resiliência, esperança e fé.
O choque da representatividade
A primeira vez que uma criança da periferia se viu refletida na tela de televisão foi um choque silencioso, mas profundo. Não era apenas um desenho qualquer: era Super Choque, um jovem negro com poderes elétricos, que falava gírias iguais às da rua, usava boné para trás e corria por bairros que lembravam muito os de quem o assistia. Pela primeira vez, um super-herói não era apenas alguém distante, de armaduras douradas ou castelos encantados ele era alguém que poderia existir ali, na esquina, no beco, na quadra de basquete improvisada.
O impacto de se ver representado é muitas vezes subestimado. Para a criança da periferia, cada episódio era uma confirmação silenciosa: “Eu posso ser herói. Eu posso fazer a diferença. Eu importo.” Não era só entretenimento; era pedagogia da autoestima. A TV deixava de ser apenas um portal para mundos fantásticos e se tornava espelho da realidade, refletindo sonhos, medos e possibilidades.
E nesse choque da representatividade, aprendíamos também sobre resiliência. Super Choque enfrentava vilões, injustiças e desafios da cidade, mas nunca perdia o senso de humor, a determinação ou o vínculo com amigos. A lição era clara: coragem não é ausência de problemas, mas a capacidade de resistir a eles mantendo a própria essência.
Para muitas crianças, ver um personagem negro e periférico vencer não era apenas simbólico era inspirador. Era a confirmação de que a criatividade, a ética e a coragem não pertencem a um bairro nobre ou a um universo distante. Estavam, e sempre estiveram, na vivacidade das ruas, na inteligência das molecagens e na imaginação fértil dos que cresciam sem privilégios, mas com muita força interior.
A molecagem que resiste
Se o episódio anterior nos mostrou o poder da identificação, este nos leva de volta às ruas, aos quintais e becos, onde a molecagem acontecia não como simples travessura, mas como expressão criativa e resistência.
Molecagem é o riso que desafia regras, a inventividade que transforma latas em bolas, pedaços de pano em capas de super-heróis, restos de papel em pipas. É a pedagogia da rua, onde cada queda ensina, cada tropeço fortalece, cada riso coletivo reforça a solidariedade.
No contexto da periferia, a molecagem tem uma função ainda maior. Ela resiste à adultização precoce imposta por dificuldades, responsabilidades e preconceitos. Crianças que deveriam carregar o peso do mundo aprendem, brincando, que ainda podem ser livres. Pulam muros, correm pela rua, inventam histórias que misturam realidade e fantasia, e, sem perceber, desenvolvem habilidades de resolução de problemas, cooperação e imaginação — exatamente o que os grandes livros de pedagogia chamariam de “aprendizado significativo”.
É nesse espaço de liberdade que a infância sobrevive. Cada jogo de bola improvisado, cada batalha de pipas ou corrida em meio aos carros estacionados carrega consigo lições de resistência. O lúdico é uma forma de proteção, um escudo invisível contra a perda da inocência.
A molecagem, portanto, não é bagunça. É energia vital. É política silenciosa: a criança afirmando seu direito de existir plenamente, de ser criança, mesmo quando o mundo tenta transformá-la prematuramente em adulta. É nessa vivência que se encontram as sementes de criatividade, empatia e coragem elementos essenciais para qualquer herói, seja ele da periferia, da TV ou da vida real.
Moleques do mundo todo
Se a periferia brasileira nos ensinou sobre resistência e criatividade, o universo literário e musical nos mostra que a infância é um fenômeno global, pulsando de formas diferentes, mas com os mesmos ecos de alegria e descoberta.
Lembramos de Caçadores de Pipas, onde moleques afegãos correm pelas ruas com suas pipas, entrelaçados em histórias de amizade, traição e redenção. Ali, como nos becos e praças do Brasil, as pipas são mais que brinquedos: são símbolos de liberdade, esperança e imaginação. O ato de correr atrás de algo que voa alto, de lutar por um pedaço de céu, traduz o espírito da infância que, apesar das adversidades, insiste em existir.
No Brasil, em bairros periféricos ou pequenas vilas, os moleques improvisam jogos, inventam histórias e criam mundos com o que têm. O mesmo acontece em Cabul, em vilarejos africanos, em bairros pobres de cidades do mundo todo. A infância não conhece fronteiras: é universal, resistente e criativa.
E é justamente essa universalidade que ressoa na música “Moleque de Vila”. O ritmo, as palavras e a energia da canção sintetizam a vivacidade de crianças que vivem nos subúrbios, nos becos, nas ruas, em casas simples, mas que carregam sonhos gigantes. Ela celebra a audácia, a coragem e a alegria, transformando o cotidiano difícil em poesia e resistência.
Quando ouvimos a música ou revisitamos histórias como as de Caçadores de Pipas, percebemos que os moleques do mundo todo têm algo em comum: eles correm, inventam, erram, riem, aprendem, persistem. São professores silenciosos da vida, lembrando adultos de que a essência da infância não está apenas na inocência, mas na capacidade de resistir, de imaginar e de criar.
E assim, entre pipas que cortam o céu, risadas que ecoam pelas ruas e super-heróis que brilham na tela, a infância se mantém viva. Ela nos lembra que cada criança seja em Vila Madalena, em Cabul, em Cabul ou em qualquer outro lugar merece existir plenamente, brincar, aprender, errar, sonhar. E que, enquanto houver molecagens, pipas e canções, a criança interior de todos nós nunca estará perdida.
Reflexões sobre o brincar das gerações atuais
A infância sempre foi uma paisagem em movimento. No passado, era marcada por tardes longas, por brincadeiras nas ruas, por pipas que riscavam o céu e por desenhos animados que iluminavam salas de estar silenciosas. Hoje, a paisagem mudou, mas os elementos fundamentais curiosidade, imaginação, descoberta e alegria continuam pulsando, embora disfarçados entre telas de smartphones, tarefas escolares e um mundo que insiste em encurtar a inocência.
As crianças de hoje vivem em territórios complexos. Elas crescem cercadas por informações, estímulos e expectativas que, muitas vezes, ultrapassam suas capacidades naturais de compreensão. A adultização precoce é um desafio invisível, mas real: responsabilidades cedo demais, pressões sociais, comparações constantes nas redes, mensagens de que precisam produzir, competir, performar. É como se a infância estivesse sendo comprimida, como uma mola que se estica além do limite, e parte de sua leveza se perde no caminho.
Mas, ao mesmo tempo, essas crianças também são incrivelmente resilientes. Elas inventam maneiras próprias de se conectar com o mundo, de criar espaço para a brincadeira, de construir sentido dentro de regras que nem sempre fazem sentido. Quando uma criança ri, corre, improvisa uma história ou desenha seu próprio universo, estamos testemunhando atos de resistência resistência à perda da essência infantil, resistência à pressão de se tornar adulto antes da hora.
A molecagem, tão valorizada nos episódios anteriores, continua sendo um conceito poderoso. Hoje, talvez não pulemos muros ou joguemos bola nas ruas da mesma forma, mas a molecagem se manifesta nas invenções digitais, nas criações de vídeos caseiros, nos jogos coletivos online, nas experiências que misturam brincadeira, aprendizado e criatividade. A essência permanece: a infância é feita de tentativas, erros, descobertas e risadas, mesmo quando a tecnologia e a urbanização transformam o cenário físico das brincadeiras.

A diversidade da infância atual também merece atenção. Hoje, crianças negras, indígenas, periféricas e de múltiplos contextos culturais encontram desafios adicionais. Representatividade, ou a falta dela, tem impacto direto em autoestima, senso de pertencimento e imaginação. Por isso, heróis como Super Choque ou personagens que refletem realidades periféricas continuam sendo fundamentais. Eles mostram que a criança pode sonhar, lutar e existir plenamente dentro do mundo que tem, e que sua cor, origem ou condição social não definem limites para sua criatividade ou coragem.
Além disso, os desenhos, animes e narrativas digitais continuam exercendo a função de educadores silenciosos. Eles ensinam valores, ética e empatia de maneiras que muitas vezes escapam ao ensino formal. Crianças absorvem ideias de justiça, amizade, coragem e solidariedade através de histórias, cores, músicas e personagens que se tornam memoráveis para toda a vida. A tela digital, seja ela TV, tablet ou celular, é agora um portal que conecta a infância a mundos possíveis, ao mesmo tempo que exige cuidado dos adultos para não se tornar substituto da realidade.
Outro ponto crucial é a periferia e a forma como ela molda a infância. Apesar das dificuldades, a periferia é um espaço de criatividade e sociabilidade únicos. As crianças aprendem a inventar, improvisar e criar jogos com poucos recursos. Cada brincadeira de rua é uma lição de coletividade; cada pipa que voa no céu é uma lição de esperança; cada risada compartilhada é uma afirmação de humanidade. Esses territórios continuam sendo laboratórios da infância, onde se aprende a lidar com frustrações, a encontrar soluções e a celebrar pequenas vitórias.
As crianças de hoje também enfrentam o paradoxo da hiperconectividade. Elas têm acesso a informações e experiências antes inimagináveis, mas ao mesmo tempo, correm o risco de perder o contato com a experiência sensorial direta, com o corpo, com a rua, com o toque e o olhar. Por isso, é essencial incentivar momentos de desconexão, de molecagem analógica, de brincadeiras que envolvam movimento, improviso e imaginação. É nesses intervalos que a criança recupera seu ritmo natural, sua curiosidade genuína e sua capacidade de se maravilhar com o mundo.
A educação contemporânea, portanto, precisa reconhecer essa complexidade. Crianças não são apenas sujeitos de aprendizagem formal; são criadores de mundo, exploradores de realidades e mestres de resistência. A pedagogia moderna precisa equilibrar conhecimento, criatividade e espaço para a infância plena. É um desafio que exige sensibilidade, escuta, respeito aos ritmos individuais e valorização das experiências lúdicas.
Em um mundo onde a violência, a desigualdade e a pressa invadem o cotidiano infantil, resgatar a alegria, a liberdade e a imaginação é um ato de cuidado profundo. Cada desenho que emociona, cada história que inspira, cada risada coletiva, cada pipa solta no céu representa uma forma de cuidado social e emocional, não apenas individual.
E, finalmente, é essencial lembrar que a infância não é universalmente uniforme. Crianças do mundo todo, como os moleques de Caçadores de Pipas, correm, brincam, inventam e aprendem em contextos diferentes, mas todas compartilham a mesma urgência de existir plenamente. Assim como em “Moleque de Vila”, cada criança carrega consigo o poder de transformar o ordinário em extraordinário, de ressignificar desafios, de resistir e criar mundos possíveis.
Portanto, ao olhar para as crianças da atualidade, é preciso enxergar mais do que o presente imediato. É necessário perceber potencial, resistência e criatividade, reconhecer que cada gesto lúdico, cada brincadeira improvisada, cada momento de molecagem é uma afirmação de vida e humanidade. E mais do que nunca, é nossa responsabilidade como sociedade preservar esses espaços de infância, garantindo que, em meio à pressa do mundo adulto, a criança possa rir, correr, errar, sonhar e ser plenamente ela mesma.
A infância é urgente. É resistência. É futuro. E, enquanto houver pipas no céu, telas que iluminam o olhar, ruas para brincar e canções que celebram a alegria de existir, nenhuma criança estará perdida e nenhum adulto deixará de se lembrar de que, dentro dele, também há um moleque pronto para correr, inventar e sonhar.
Lembre-se! Dá para ser adulto, dá para ter responsabilidade. Dá para brincar às vezes. Acredite, isso compensa!
A vida é linda!
Queridos leitores,
Eu desejo muito que divirtam-se!
Até a próxima!