Episódio 3:"Adultos Infantilizados: Quando a Criança Interior Não Cresce"
A infância é uma fase de descobertas.
O brincar, o imaginar, o experimentar fazem parte desse território de liberdade.
Mas,
toda criança cresce.
E, crescer exige algo duro: assumir responsabilidades.
O problema é que muitos recusam esse processo.
Não por incapacidade, mas por escolha.
São homens e mulheres que se escondem atrás da desculpa da “criança interior”, mas que, no fundo, fogem de se tornar adultos.
Não cultivam a leveza da infância e, sim, perpetuam a fuga.
Adultos Infantilizados: Entre a Psicologia, a Psicanálise e a Educação
Falar de adultos infantilizados é inevitavelmente entrar em um terreno delicado, onde se cruzam diferentes perspectivas da compreensão humana. De um lado, a psicologia contemporânea busca entender os fatores emocionais, sociais e culturais que levam à recusa em amadurecer; de outro, a psicanálise examina as forças inconscientes que perpetuam fixações e impedem a elaboração de perdas necessárias; por fim, a educação, especialmente no campo da educação positiva, oferece caminhos para evitar que esse padrão se reproduza em novas gerações e, ao mesmo tempo, fornece ferramentas para ajudar os adultos já formados a repensarem sua própria relação com a maturidade.
A infantilização de adultos não pode ser entendida apenas como preguiça ou irresponsabilidade, como muitas vezes aparece no senso comum. Ela é, antes de tudo, um fenômeno complexo, que nasce da interseção entre fatores individuais e coletivos, entre desejos íntimos e pressões sociais, entre falhas de estruturação subjetiva e um contexto cultural que reforça a fuga da responsabilidade. Quando olhamos por esse prisma, percebemos que o fenômeno não se limita ao indivíduo isolado, mas representa uma tendência mais ampla de nossa época, marcada pelo consumo imediato, pela dependência emocional mascarada de afeto e por uma educação que, em muitos casos, falhou em oferecer os instrumentos para a construção da autonomia e da resiliência.
Do ponto de vista psicológico, o adulto infantilizado apresenta dificuldades claras em lidar com a frustração. A frustração, no entanto, não é algo negativo em si, mas um dos motores do crescimento humano. É pela experiência da falta que aprendemos a adiar gratificações, a buscar soluções mais criativas e a entender que nem tudo se resolve de imediato. Quando esse processo é interrompido ou mal elaborado, o sujeito passa a desejar que a vida lhe ofereça, para sempre, a mesma proteção e o mesmo imediatismo da infância. Isso se expressa em comportamentos como o consumo exagerado, a dependência emocional e a recusa em assumir compromissos duradouros. Em última instância, a dificuldade em tolerar a frustração transforma a vida em um ciclo de tentativas de prazer imediato seguidas de um vazio que nunca se preenche.
A psicanálise aprofunda essa análise ao revelar que o adulto infantilizado não apenas evita responsabilidades, mas permanece preso a fixações infantis, muitas vezes ligadas a falhas na elaboração do complexo de Édipo, na resolução das fases do desenvolvimento psicossexual ou na construção de uma identidade sólida. Freud já observava que a passagem da infância à vida adulta exige um trabalho psíquico de luto: o luto da onipotência infantil, o luto da presença constante dos pais como garantidores da felicidade, o luto da crença de que o mundo existe para satisfazer nossos desejos. Quando esse luto não é elaborado, o sujeito pode permanecer aprisionado em uma posição regressiva, incapaz de aceitar a castração simbólica e de se reconciliar com os limites da realidade. Nesse sentido, a infantilização é uma defesa contra a dor da perda, mas é uma defesa que cobra um preço alto: a estagnação.
Outro ponto fundamental na visão psicanalítica é a questão do gozo. O infantilizado busca incessantemente pequenas doses de prazer imediato, mas nunca encontra satisfação duradoura. É como se repetisse um ciclo de demandas infantis que não podem ser plenamente atendidas. Lacan descreveu esse processo como uma eterna busca pelo objeto a, aquilo que se deseja, mas nunca se alcança. O sujeito infantilizado, incapaz de simbolizar suas faltas e transformá-las em projetos adultos, permanece preso nesse circuito de desejo insaciável, que se traduz em compulsões de consumo, em relacionamentos marcados por dependência ou em uma constante sensação de vazio.
Do ponto de vista educacional, a questão também se mostra urgente. A educação tradicional muitas vezes reforçou padrões autoritários, que não ensinavam a criança a lidar com a frustração de forma saudável, mas apenas a obedecer por medo. Já modelos excessivamente permissivos, por outro lado, contribuíram para criar adultos incapazes de estabelecer limites internos, pois nunca tiveram limites externos consistentes. É nesse ponto que a educação positiva surge como alternativa poderosa. Diferente do autoritarismo, que reprime, e da permissividade, que abandona, a educação positiva propõe um caminho equilibrado: firmeza com empatia, disciplina com acolhimento, autonomia com responsabilidade.
Quando aplicada de maneira consistente, a educação positiva permite que a criança desenvolva autoconfiança, aprenda a lidar com erros, compreenda as consequências de seus atos e, ao mesmo tempo, preserve a capacidade de brincar, de imaginar e de se expressar livremente. O que se planta na infância com esse modelo floresce na vida adulta como resiliência, capacidade de planejar, abertura para relacionamentos saudáveis e disposição para enfrentar desafios. Em outras palavras, a educação positiva não apenas previne a infantilização, mas forma sujeitos mais capazes de integrar a criança interior ao adulto necessário.
No entanto, quando essa educação não é oferecida, o que se observa são adultos que oscilam entre dois extremos: ou se tornam rígidos e incapazes de desfrutar do lúdico, porque aprenderam apenas a obedecer, ou se tornam dependentes e frágeis, porque nunca aprenderam a assumir responsabilidades. Nos dois casos, há uma dificuldade em encontrar o equilíbrio entre a leveza da criança e a maturidade do adulto.
É importante destacar que a infantilização, apesar de parecer um problema individual, também se alimenta de um contexto social que a incentiva. Vivemos em uma cultura que celebra a juventude eterna, que transforma a adolescência em modelo de vida e que oferece meios infinitos de evitar o confronto com a realidade: redes sociais que anestesiam, aplicativos que resolvem tudo com um clique, produtos que prometem satisfação instantânea. O adulto infantilizado é, em parte, vítima desse cenário, mas também cúmplice dele, porque aceita se prender a esse circuito de imediatismo.
Para a psicologia educacional, o desafio é ajudar o sujeito a reconstruir sua autonomia mesmo depois de adulto. Isso exige um processo de reeducação emocional, que passa pelo reconhecimento da importância do erro, pela aceitação da frustração e pela compreensão de que responsabilidade não é castigo, mas oportunidade de construção. Estratégias de educação positiva podem ser aplicadas também em ambientes terapêuticos e de desenvolvimento pessoal, estimulando adultos a exercitar habilidades de autorregulação, comunicação assertiva e tomada de decisões conscientes.
Um ponto delicado é que muitas vezes o adulto infantilizado só procura ajuda quando já enfrenta consequências sérias: dívidas, separações, fracassos profissionais, crises existenciais. Até esse momento, a infantilização parece confortável, quase uma proteção contra o peso da realidade. Mas quando a realidade se impõe, ela cobra de forma implacável. Nesse sentido, o trabalho terapêutico, seja ele psicológico ou psicanalítico, precisa desmontar a ilusão da proteção infantil e ajudar o sujeito a reconhecer que amadurecer, por mais doloroso que seja, é o único caminho para uma vida plena.
A educação positiva, ao enfatizar a importância de escolhas conscientes, de consequências consistentes e de relacionamentos baseados em respeito mútuo, pode servir como um roteiro não apenas para pais e educadores, mas para qualquer adulto que deseje se libertar do ciclo de infantilização. Aprender a escutar a própria criança interior sem se tornar refém dela é um exercício diário, que demanda esforço, disciplina e, sobretudo, coragem.
Em última instância, o debate sobre adultos infantilizados nos obriga a olhar para além do indivíduo e pensar na sociedade que estamos construindo. Uma sociedade de adultos que fogem das responsabilidades é uma sociedade vulnerável, frágil, incapaz de enfrentar crises coletivas. Se cada sujeito permanece em sua bolha de prazer imediato, quem sustenta os compromissos maiores? Quem constrói o futuro comum? Nesse sentido, amadurecer não é apenas uma questão pessoal, mas um ato de responsabilidade social.
Assim, integrar as perspectivas da psicologia, da psicanálise e da educação é fundamental. A psicologia nos lembra da importância da tolerância à frustração e da autorregulação. A psicanálise nos mostra como a recusa em elaborar perdas nos aprisiona em posições infantis. A educação, sobretudo por meio da educação positiva, nos oferece ferramentas para ensinar e reaprender a responsabilidade sem sufocar a criatividade. Juntas, essas abordagens apontam para a mesma direção: amadurecer não significa matar a criança interior, mas aprender a conviver com ela sem abrir mão do adulto que precisamos ser.
O desafio contemporâneo é enorme. É mais fácil se deixar seduzir pela promessa do eterno presente, pela ilusão de que é possível viver sem compromissos, sem dor, sem luto. Mas o preço dessa escolha é alto demais. O adulto infantilizado pode até rir mais, mas não constrói. Pode até se divertir mais, mas não amadurece. Pode até escapar por algum tempo, mas inevitavelmente será alcançado pela realidade.
A educação positiva, aplicada tanto na infância quanto na vida adulta, nos convida a um caminho mais difícil, mas mais fecundo: o de unir a alegria da criança à coragem do adulto, o de manter o riso sem abandonar a responsabilidade, o de reconhecer que amadurecer não é perder, mas ganhar a chance de viver plenamente.
No fim das contas, a pergunta que cada um precisa fazer é simples, mas perturbadora: estou preservando minha criança interior ou estou apenas me recusando a crescer? A resposta a essa pergunta define não apenas a vida de um indivíduo, mas o rumo de toda uma sociedade.
Carta do coordenador do projeto:
"Caro leitor,
O equilíbrio é fundamental em nossas vidas. Aprendemos a desbravar quando crianças para, futuramente, aprendermos a lidar com os problemas da vida adulta com assertividade. Certas decisões na vida são práticas e racionais. Mas, não confunda racionalidade com frieza. É possível equilibrar a racionalidade com ética e respeito. Não podemos ser guiados totalmente pelas emoções, senão poderemos cair em lugares de carência e poderemos até confundir empartia com submissão.
Outro ponto importante da vida adulta é a aceitação, que é diferente de conformismo. Vamos aprender a aceitar a vida como ela é e as pessoas como elas são. É normal recebermos "nãos" em nossas vidas e, isso não necessariamente nos impede de buscarmos os nossos "sims".
Equilíbrio é tudo. Eu penso que o caminho do meio ainda é o mais assertivo.
Sobretudo, enxergo que um adulto de valor busca integrar a coerência e integridade em suas atitudes. Ainda acrescento a fé. Valorize sua identidade, sinalize suas limitações e responsabilize-se pela sua felicidade. É possível brincar com responsalidade, desbravar com prudência e se posicionar sem humilhar. É processo doloroso mas necessário, crescer dói, amadurecer é difícil, no entanto, é necessário e libertador.
Divirta-se no processo,
Com amor,
Betinho
(Weberton Moreira)"
A síntese
Não é errado brincar.
Não é errado rir.
Não é errado gostar de coisas “infantis”.
Errado é confundir isso com amadurecimento.
Errado é usar a criança interior como desculpa para nunca enfrentar a vida.
No fim, a verdade é direta, incômoda e inegociável:
Quem se recusa a crescer não preserva a criança interior. Abandona o adulto que nunca aprendeu a ser.
Referências (ABNT)
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
PETTIT, Philip. Educação positiva: como pais e professores podem ajudar crianças a prosperar. Porto Alegre: Penso, 2015.
NELSON, Karen; LUCEY, David. Positive Education: The Geelong Grammar School Journey. Oxford: Oxford University Press, 2011.
SELIGMAN, Martin. Florescer: uma nova compreensão sobre a natureza da felicidade e do bem-estar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
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